quarta-feira, setembro 20, 2006

farrapos de palavras num caixote velho..

Estava há tanto tempo dentro daquele caixote velho, que já não se lembrava de nada. Como tinha ido ali parar, porque motivo.. Já nem sabia bem o que era. Sentia que tinha pelos, muito pó em cima e que não era grande, era até o mais pequeno do caixote. Lá dentro estava escuro. Mas, de longe a longe, lá entrava um pequeno brilho. Não que deixasse de ser escuro, apenas lhe permitia sentir uma certa profundidade naquele espaço cúbico, onde mais algumas coisas jaziam, esquecidas. Na realidade, nem sabia que estava num caixote de brinquedos, isso só soube mais tarde, quando o vieram buscar. É estranho, quando se está assim, tanto tempo no mesmo lugar, sem fazer nada, só a sentir, mistura-se tudo e as memórias passam a ser farrapos de palavras. Mas o esquecimento é um amigo, o único conforto na solidão do vazio. É o que permite ter a existência assim, em suspenso, adormecida. E o que havia para sentir era tão pouco. Só o pó que se ia acumulando ao longo do tempo mas que caia tão devagar e que era tão leve; as suaves variações da escuridão; e alguns sons distantes, meio abafados, que chegavam de algures debaixo de si. O que mais gostava era um som cristalino que parecia um carrilhão (não que ele soubesse o que era um carrilhão, ou até de onde lhe vinha essa palavra, mas era assim que o seu pensamento chamava àquele som). Mais tarde veio saber que era o riso do menino da casa, o seu salvador, o João. Mas também só mais tarde soube o que era um riso. Foi, de facto, a primeira coisa que descobriu no dia em que o vieram buscar.

_"Ooh! O meu peluche, mãe! Afinal estava aqui no sótão!"_ e lá veio o carrilhão.

1 comentário:

Aldina Duarte disse...

Compreendo perfeitamente o sorriso de que fala, pois o único brinquedo que mantenho da minha infância é precisamente um urso de peluche, não muito grande, pelo qual esperei a primeira infância toda, mas veio, e, talvez por isso, nunca mais o perdi de vista até hoje onde o mantenho confortável no cesto dos brinquedos cá de casa, por agora para a minha sobrinha:-D

até sempre